O NEGRO  NA  IMPRENSA BAIANA
 
Jocélio Teles dos Santos 
(Departamento de Antropologia-UFBA)


Na história e na antropologia os jornais são fontes de representações, expectativas e posturas. E os jornais baianos tornaram-se  referências para pesquisadores que analisaram a pobreza, as estratégias de sobrevivência e ocupação de espaços na capital soteropolitana, e os movimentos grevistas de ganhadores e carregadoras no século XIX. 
 
 Os textos publicados pelos jornais e a construção dos seus discursos, muitas vezes, implícitos no que se referem a uma representação racial têm como pressuposto um tratamento diferenciado das fontes, afinal o discurso tem um lugar onde é produzido.  
 
Por isso, acho que há um consenso: os estudos afro-brasileiros têm uma  produção considerável dedicada à  temática histórica e cultural negras no século XIX e XX. Visto que Nina Rodrigues foi o pioneiro desses estudos, constata-se a existência de centenas de artigos em revistas especializadas e de distribuição comercial no Brasil e no exterior, dezenas de teses de mestrado e de doutorado, e livros produzidos em universidades brasileiras e estrangeiras. Uma boa parte desta produção, sobretudo, a de caráter histórico, debruçou-se sobre os arquivos históricos baianos (Arquivo Público Estadual, Arquivo Público Municipal) e o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia,  onde há uma farta documentação que inclui manuscritos, revistas e jornais.

Como já foi observado, os jornais podem ser vistos como um produto social (cf. Schwarcz, 1987, p.15), reconhecidos socialmente, em que se observam expectativas, posturas e representações específicas. O estudo pioneiro de Gilberto Freyre (1979) já apontava que informes de caráter descritivo ou interpretativo contidos nos jornais podem se tornar uma grande fonte de conhecimento da população negra no país.
 
Os textos produzidos pelos jornais são, portanto, objeto de conhecimento, já que desde a segunda metade do século XIX a imprensa difundiu-se pelo país e se constituiu no único órgão de comunicação de massa para anunciar remédios, chapéus, licores, roupas e outros produtos estrangeiros, endereços de renomados médicos e cientistas, assim como veiculava o que era considerado notícia, fossem as desavenças pessoais e políticas, ou o que era considerado "estranho’ e não civilizado. 
 
Devemos registrar que o Diário de Notícias, Diário da Bahia, Correio de Notícias e o Jornal de Notícias tornaram-se fontes utilizadas por Nina Rodrigues, no limiar do século XX, quando indicava a presença de candomblés na cidade do Salvador.  Posteriormente, jornais baianos, deste mesmo período, tornaram-se uma fonte de referência para pesquisadores que analisaram a pobreza e as estratégias de sobrevivência e ocupação de espaços na capital soteropolitana, os movimentos grevistas de ganhadores e carregadoras de água, e a institucionalização do candomblé (v. Fraga Filho, 1996; Reis, 1993; Lima, 1989/1990; Parés, 2006). 
 
Ainda sobre o século XIX, encontrei nos jornais O Alabama, Jornal da Bahia e Diário da Bahia referências aos costumes e hábitos baianos sobre a indumentária masculina e feminina, a perseguição às práticas sexuais que tinham no vestuário a referência da perseguição policial, a repressão a batuques e sambas, e que resultaram em artigos publicados em 1997 e 1998. Outros pesquisadores, por recortes diversos, debruçaram-se sobre  jornais do século XX para amparar a reflexão acerca da repressão policial a candomblés nas décadas de vinte (Braga, 1995), a ordenação do espaço público  (Filho, 1998-1999)  e o olhar sobre os blocos afro (Gomes, 1989).
 
Mesmo havendo nos jornais uma significativa referência da história sócio-política e cultural do estado da Bahia, carecia uma sistematização das fontes, ao longo do século XIX ou do século XX, tendo como temática a população negra na imprensa baiana.  O levantamento de fontes podia ser verificado em publicações como Documentação Jurídica sobre o Negro no Brasil (1800-1888), Legislação da Província da Bahia sobre o Negro (1835-1888) e o Guia de Fontes para a História da Escravidão, publicados no centenário da Abolição, e que priorizaram documentos e manuscritos.  
A disponibilização de matérias de jornais constituem-se, portanto, em releituras interpretativas, assim como possibilita uma maior divulgação de fontes utilizadas ainda de forma  pontual.
 
O que se pretende neste espaço virtual?
Este site tem o propósito de constituir um repertório de fontes da primeira década do século XX, no que se refere a notícias de temática racial, seja através de matérias sobre outros países ou, em maior número, à população afro-brasileira, suas manifestações culturais como sambas, batuques, candomblés, capoeira e entidades carnavalescas, a inserção no mercado de trabalho, através de anúncio de emprego com relevância ao aspecto racial, causas de doenças, mortes, linguagem do cotidiano que remetem à característica dessa população, as suas entidades políticas e condições sociais.

A finalidade é apresentar uma documentação sobre a temática negra, levando em consideração o estado que alguns exemplares de jornais no período pesquisado se encontrava. Essa documentação que não é invisível, posto que a maioria dos jornais encontra-se em livre acesso,  permite-nos observar a importância de matérias contidas nos arquivos e bibliotecas, como depositários de temas para uma história negra e a sua relação com a dinâmica da sociedade brasileira. 

O estado precário de uma boa parte da documentação demonstra que o trabalho de uma pesquisa deste porte, e a sua veiculação, resultará numa forma de resguardar, mesmo que as matérias possuam estereotipia e preconceito, uma memória negra contida nessa fonte impressa, assim como o registro de informações de jornais, maioria extintos, publicados na capital e em muitas cidades do interior. 

O número de periódicos corresponde a jornais localizados nos Arquivos Públicos Municipal e Estadual, Biblioteca Central e no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Inicialmente, fizemos um levantamento para a identificação dos jornais, os anos correspondentes, visto que não havia uma seqüência regular em todas as instituições. Na tentativa de contornar o problema da falta de uma seqüência regular, construímos um quadro sinótico para verificar as lacunas referentes aos anos de cada periódico existente nos locais a serem pesquisados. 

Pesquisamos treze jornais: Jornal de Notícias, Correio de Notícias, A Bahia, A Coisa, Diário de Notícias, A Ordem, Foia dos Roceros, O Estímulo, Correio do Brasil,  Gazeta do Povo, Correio da Tarde, Correio de Alagoinhas e O Serrinhense.  

Visando uma melhor organização das informações coletadas e um aproveitamento que possibilite aos pesquisadores, e ao público em geral, maiores informações no que tange às fontes, organizamos um roteiro para transcrição das matérias. Identificamos o nome do periódico, propriedade ou vinculação a alguma entidade (associações, grêmios, cooperativas), local da redação ou administração, endereço para correspondência ou contato, ano de fundação, seção, colunas, número de páginas. Buscamos também identificar a linha editorial e o contexto histórico identificado no jornal. 

A metodologia da transcrição do texto foi observada em relação a colunas, existência de ornamentos, letras maiúsculas, minúsculas, itálicas, góticas, a grafia das palavras, existência de sinais especiais, data do jornal, data do texto e possível existência de rasuras ilegíveis do texto com auxílio de colchetes e de reticências [ ... ] . Todo esse cuidado teve como ponto de partida a leitura atenta da narrativa contida nos jornais no que se referia a alguma indicação referente à temática racial.

Na coleta e transcrição dessas mais de mil e quatrocentas matérias tínhamos como pressuposto o que as notícias transmitem em termos de ações; isto implicava uma atenção particular para o que elas dizem, bem como a forma no que nela é dito, e o que pretendem (cf. Geertz, 1978).  Desse modo, esperamos que o trabalho aqui realizado contribua para a contínua e profícua produção dos estudos afro-brasileiros.  E isto é mais que um propósito é um desejo.



REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS


Braga, Júlio.  Na gamela do feitiço. Repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador: Edufba, 1995.


Filho Alberto Heráclito F.  "Desafricanizar as ruas: elites letradas, mulheres pobres  e cultura popular em Salvador (1890-1937)”.  Afro-Ásia, 21-22 (1998-1999), 239-256.

Filho, Walter F.  Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec-Edufba, 1996.


Freyre, Gilberto.   O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX.  São Paulo/Recife: Cia. Editora Nacional/ Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1979. 

Geertz, Clifford.  A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

Gomes, Olívia Maria dos S.  "Impressões da festa: blocos afro sob o olhar da imprensa baiana”.  Estudos Afro-Asiáticos, n º 16, março de 1989, pp.171-187.

Parés, Nicolau. A formação do candomblé. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006. 

Reis, João J.  "A greve negra de 1857”.  Revista USP, n º 18, junho/julho/agosto 1993, pp.6-29 .

Santos, Jocélio T. dos .  " ‘Incorrigíveis, afeminados, desenfreiados’: indumentária e travestismo na Bahia no século XIX”. Revista de Antropologia, USP, vol. 40, n º 2, 1997, 145-182 .

__________________   "Divertimentos estrondosos: batuques e sambas no século XIX”.  Ritmos em Trânsito. Sócio-antropologia da música baiana. Jocélio T. dos Santos e Livio Sansone (orgs.) . São Paulo: Dynamis Editorial/ Programa A Cor da Bahia, 1997, pp.15-38.

Schwarcz, Lilian.  Retrato em branco e negro. Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Cia. das Letras,  1987.

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